Ele diz que não valeu a pena
porque não fez nada, e diz isso como quem acorda no meio da noite para fumar um
cigarro, como quem endureceu sem ter amadurecido seus sonhos. Ele já passa dos
sessenta, mas se sente um menino caindo da bicicleta e correndo para o colo da
mãe. Quando pergunto sobre o seu caminho até aquele degrau da vida, ele se
emociona e diz que durante muito tempo teve medo de voltar a andar de
bicicleta.
Mesmo desconversando eu entendo a
sua posição porque estou acostumado a ler observações em rodapé de livro.
Durante alguns segundos sua voz se parece com a chuva, acompanhada pela
orquestra do inverno e pela harmônica do barro arrastado pelas águas.
Quero saber o meio de transporte
utilizado na sua vinda para a cidade. Ele passeia de volta nos anos e diz que o
homem é um vagão de passageiros, sem sapatos, caminhando sobre trilhos de pele.
O homem depois dos sessenta é
calado quando sabe, despreza os mapas e o convencionalismo das horas sem jamais
se perder ou chegar tarde a um encontro. O homem pode ter sessenta aos trinta.
Compreendo o silencio depois de sua fala como uma extensão da frase, hiato de
um novo manifesto.
Sinto o tempo percorrendo o
passado, entrando pelas saídas, descosturando roupas, as linhas escorregando
para fora das agulhas, assim, entre o céu e o telhado da casa, o tempo vai
pressionando o intervalo invisível, vai comprimindo as retinas e retirando as
telhas, aproxima-se do espaço aberto da “anti-metamorfose”, é quando ele me
pede para ficar quieto e ouvir a sua casca quebrar.
Ele diz que é triste embora tenha
motivos grandes para ser feliz. Eu me atrevo saber da sua felicidade e
tenho como resposta um olhar direto e generosamente paterno. Os ombros do homem
são caminhões que transportam dinamites. Suas mãos operárias escorregam pelo
rosto como um navio deslizando em águas calmas. Mãos que retratam as ruas,
emolduram o retrato da família.
Ele diz que não valeu a pena
porque não fez nada, e se emociona quando pergunto sobre o seu caminho até aquele
degrau da vida. O homem depois dos sessenta é um náufrago atirando garrafas
vazias ao mar, depois de ter bebido o vinho de todas as revoluções.
(crônica escrita em 1990)
Ricardo Mezavila
Assim,você me faz infartar!!!
ResponderExcluirBeijos,petruchia.