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terça-feira, 20 de março de 2012

Funk da propina  (Ricardo Mezavila)

Já passei pro meu filhinho
o que eu já aprendi
proteger seu contratante
é coisa muita importante
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
vou te dar uma real
mas posso te dar um iene
dólar,euro é normal
só não pode ter sirene
vem pro shopping, vem pra praia
subsolo não dá pista
é bacana na floresta
ou quinta da boa vista
qualquer lugar é festa
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
filhinho se liga
no exemplo do papai"mau"
concorrencia é coisa séria
aguarda o edital
quando a licitação sai
voce faz uma proposta
já sabendo a resposta
(já sabendo a resposta)
"é normal, isso é muito normal"
"(é normal, isso é muito normal)"
praticar quinze por cento
é de praxe no mercado
a fraude é o sustento
no pregão dos subornados
o envelope vem aberto
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
a propina vem certinho
(na caixa de uisque)
(na caixa de vinho)
e a ética? e a ética?

domingo, 4 de março de 2012

Dominical Blues




Acordar com chuva, domingo de verão, ouvindo Pink Floyd pode te fazer entrar em um transe do qual voce não queira mais voltar. As igrejas agora, nessa hora, estão lotadas de lamentos. Os parques estão vazios, as gramas não servirão de esteira nessa manhã molhada. O sol faz suas coisas às escondidas, por trás das nuvens. O homem que puxa uma carroça abre a primeira garrafa; os pardais sacodem-se nos fios de energia presos aos postes, como nas festas juninas as bandeirinhas ficam.

Da sacristia um poema antigo divorcia-se do papel e da tinta, cobre o terço nas mãos do santo de braços abertos; a criança no colo da mãe abençoa o poema que purifica o ar e comunga com os anjos em uma festa alegre. O homem sentado na esquina, sob a marquise do edifício apenas olha quando um fiapo de sol faz cócegas em seus pés sem sapatos. Dá um leve sorriso e levanta o rosto para o alto.

As lojas vão sendo abertas aos poucos, na medida do cansaço de quem abre os cadeados e levanta as portas. Eu nunca usei óculos, pra que usar óculos? Não, eu não quero nunca ter que usar óculos! Stevie Wonder não usa óculos de lente! Para que então eu deveria usar óculos de lente? Eu não toco piano, não toco instrumento algum. Eu não preciso de óculos para escrever, só de um pouco de entendimento, de sensibilidade e de silêncio. Eu, definitivamente, não preciso de óculos para fazer poesia.

Não quero sair do transe: Mother, do you think they'll drop the bomb? Mother, do you think they'll like this song?  Essas respostas estarão disponíveis em um dia qualquer, quando voce se julgar suficiente em fazer as mesmas perguntas.

Sei agora que posso levantar e vestir o manto do homem correto que não passa por ninguém sem desejar bom dia; que esconde um mendigo cabeludo dentro da garrafa do homem que puxa a carroça; que não vai à missa, mas cuida de plantas e de animais e estende as mãos sempre que ouve um “por favor”. Preciso tocar  gaita em cima da montanha depois da leitura do antigo testamento e antes do credo, uma homilia poética ao som de um blues domingueiro. Amém.

Ricardo Mezavila

quinta-feira, 1 de março de 2012

Diário de quem está para morrer (fragmentos)





Acho que estou perdendo a gravidade, às vezes sinto que meus pés estão flutuando dentro dos sapatos. A borracha da sola é que está presa a terra, como um peso, uma âncora que não permite que o navio adentre o mar a caminho do horizonte. Minhas pernas apenas aparentam estarem pesadas, na verdade são como pilastras de vento fincadas na areia.

Estou me sentindo um estrangeiro, um peixe fora d’água, desconfortável com o oxigênio, um homem metido em calças curtas saindo do pub segurando um álbum de figurinhas e um copo de Martini. A cada esquina um surto, uma topada, uma risada fora de hora, uma rasteira. Alguém me chama da janela, mas não há luz no poste da rua, não há lua boiando no céu estrelado da minha cidade, não há ninguém me chamando da janela, é só o ruído da cama denunciando uma traição.

Agora estou chegando em algum lugar onde as pessoas me cumprimentam, seus rostos rechonchudos não me lembram nada. Como uma resposta sem pergunta, vou passando por ali como uma peça que passa pelo último estágio de sua fabricação. Depois está pronta para o selo e embalagem.

Olho por baixo de um muro flutuante e atravesso a fronteira, estou em outro instante, ouço o silêncio de um instrumento encostado; toco no vazio de uma respiração tranqüila; vejo a beleza colorida do escuro; sinto o aroma das sementes de sândalo sob a terra; mastigo o lado doce do oceano.

Os cadarços de meus sapatos retrocedem seus últimos movimentos e vão recuando entre os furos, aliviando o peso e vou ganhando altura. Os edifícios pastam nas avenidas, as ruas são como serpentes sufocando as casas e os homens se ocupam do medo de não estarem ocupados em coisas banais. Sou envolvido por um bando de pássaros que migram rumo ao norte para reproduzir e criar seus filhotes. Acho boa a ideia e começo a longa viagem.

Ricardo Mezavila