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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Como eu o fiz chorar




Ele diz que não valeu a pena porque não fez nada, e diz isso como quem acorda no meio da noite para fumar um cigarro, como quem endureceu sem ter amadurecido seus sonhos. Ele já passa dos sessenta, mas se sente um menino caindo da bicicleta e correndo para o colo da mãe. Quando pergunto sobre o seu caminho até aquele degrau da vida, ele se emociona e diz que durante muito tempo teve medo de voltar a andar de bicicleta.

Mesmo desconversando eu entendo a sua posição porque estou acostumado a ler observações em rodapé de livro. Durante alguns segundos sua voz se parece com a chuva, acompanhada pela orquestra do inverno e pela harmônica do barro arrastado pelas águas.

Quero saber o meio de transporte utilizado na sua vinda para a cidade. Ele passeia de volta nos anos e diz que o homem é um vagão de passageiros, sem sapatos, caminhando sobre trilhos de pele.

O homem depois dos sessenta é calado quando sabe, despreza os mapas e o convencionalismo das horas sem jamais se perder ou chegar tarde a um encontro. O homem pode ter sessenta aos trinta. Compreendo o silencio depois de sua fala como uma extensão da frase, hiato de um novo manifesto.

Sinto o tempo percorrendo o passado, entrando pelas saídas, descosturando roupas, as linhas escorregando para fora das agulhas, assim, entre o céu e o telhado da casa, o tempo vai pressionando o intervalo invisível, vai comprimindo as retinas e retirando as telhas, aproxima-se do espaço aberto da “anti-metamorfose”, é quando ele me pede para ficar quieto e ouvir a sua casca quebrar.

Ele diz que é triste embora tenha motivos grandes para ser feliz. Eu me atrevo saber da sua felicidade e tenho como resposta um olhar direto e generosamente paterno. Os ombros do homem são caminhões que transportam dinamites. Suas mãos operárias escorregam pelo rosto como um navio deslizando em águas calmas. Mãos que retratam as ruas, emolduram o retrato da família.

Ele diz que não valeu a pena porque não fez nada, e se emociona quando pergunto sobre o seu caminho até aquele degrau da vida. O homem depois dos sessenta é um náufrago atirando garrafas vazias ao mar, depois de ter bebido o vinho de todas as revoluções.

(crônica escrita em 1990)
Ricardo Mezavila

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